O canhoto - trecho

Menos de meia-hora depois, os irmãos estavam saindo da Galeria das Águas, deixando toda a mercadoria guardada no depósito do pai. À tarde, iriam providenciar o transporte dos produtos para as diversas lojas da cidade. Eles pegaram a rua que beirava o canal, e caminharam por entre as pessoas que, como eles, apressavam-se por chegar em casa para a refeição. De repente, Nicolaas parou e respirou fundo.
- O que foi? -o irmão se preocupou.
- Está ficando cada vez mais frequente.
- Maus pensamentos de novo?
Ele concordou com a cabeça e completou:
- Acho que está acontecendo, Robrecht. Estou ficando com medo. Onde isso vai parar?
- Nicolaas, você não vai acreditar numa história de assustar criancinhas.
- Eu também achava que era só uma história. Mas está acontecendo comigo. Preciso fazer alguma coisa. Eu não quero ser controlado pelo demônio.
- Você não vai ser controlado-
- Você não sabe o que eu sinto. Você não sabe como é.
- Nicolaas, só porque você é canhoto-
- Não! Não diga essa palavra! Nunca! Você sabe que eu não gosto.
- Isso não o torna mais susceptível à influência do demônio. -ele completou o raciocínio.
- Você não sabe o que acontece dentro de mim, Robrecht. Estou lhe dizendo: eu também não acreditava. Mas agora estou com medo.
- O que pretende fazer?
- Ir embora.
- Para onde? -ele se assustou com a possibilidade.
- Ten Duinen.
- Um mosteiro? Ficou louco? Você não foi feito para a vida monacal.
- Lá o demônio não me alcançará.
- O demônio só o alcançará se você deixar.
- Aqui fora, sinto que estou perdendo a luta. Lá estarei mais perto de Deus.
- Não se precipite, Nicolaas.
- Não estou sendo precipitado. Faz quase um ano que penso em Ten Duinen.
- Esqueça isso tudo: o demônio, os mais pensamentos, Ten Duinen, tudo. Esqueça e viva normalmente. É só uma fase, vai passar.
- Faz dois anos que você diz que vai passar. Mas, em vez de passar, está piorando.
Robrecht não sabia o que dizer. Não queria ficar sem o irmão mas também não lhe agradava vê-lo assim, atormentado.
- Vamos para casa -Nicolaas concluiu- Não vamos decidir nada aqui e agora.
Eles andaram mais um pouco, até que Nicolaas parou novamente. Mais um barco vinha pelo canal, indo para o centro da cidade, e nele Nicolaas reconheceu uma pessoa, que sorria ao rever sua cidade.
- É Ester! -ele pensou alto, avisando Robrecht, e chamou por ela.
Ester atendeu, e sorriu ao ver quem a chamava.
- Que bom vê-los! -ela saiu de onde estava, na amurada da proa, e foi andando pela lateral do barco, para estar mais perto deles.
- Você voltou!
- Para sempre.
O barco continuava seu caminho, e Ester já chegara à popa, e já não se podia conversar. Então ela apenas gritou para eles:
- Irei vê-los à tarde.
Nicolaas confirmou com um gesto de cabeça, e ficou ali vendo o barco levá-la.
- Ester voltou... Para sempre, ela disse.
Robrecht concordou com um gesto de cabeça.
- Eu tinha me esquecido de como ela é linda. Como ela é linda!...
Robrecht puxou-o pelo braço, para que eles voltassem a andar.
- É assim que você quer ir para um mosteiro? Pensando numa mulher?


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